O Dr. Eduardo Coelho deixa-nos esta interessantíssima reflexão e não menos pertinente análise ao filme "Capas Negras", análise esta que vai mais além na dissecação do conteúdo, contexto histórico e geográfico do mesmo, numa época onde a 7ª Arte em Portugal era particularmente dirigida para a propaganda simples e ao mesmo tempo franca das virtudes nacionalistas, com as tradições culturais bem vincadas nessa cinematografia que nos legou títulos como "O Pai Tirano", "Costa do Castelo", "Cantiga da Rua" e "Pátio das Cantigas" - somente para citar alguns.
A iconografia associada ao Estudante não poderia faltar, naturalmente, nesse contexto tão intrinsecamente português quanto genialmente manipulador de massas, tão em voga então nas ditaduras europeias do pós 2ª Guerra Mundial e mesmo anteriormente a este período - recorde-se Franco e o S.E.U. p.ex. - que pretendiam elevar as ditas virtudes e traços genéticos culturais como forma de afirmação de um Povo além mas principalmente, e no nosso caso, aquém fronteiras. Amália contracena neste filme com o grande Alberto Ribeiro - interprete original do tema "E o Porto é Assim", p.ex - um dos nossos grandes tenores portugueses e na senda de Tomás de Alcaide, Luís Piçarra, Tristão da Cunha ou Loubet Bravo. É a análise, quiçá, inédita, do Dr. Eduardo Coelho e face ao filme em causa, que aborda muito mais do que aparentemente, o mesmo sempre mostrou.
Desde logo, a relação também deste filme com a Academia do Porto, aqui superiormente explicada pelo seu autor. Clara fica também - e MAIS uma vez - a inobservância de determinadas figuras naqueles tempos e que hoje se arrogam proprietárias da Praxe. Ao Dr. Eduardo Coelho os créditos devidos e um agradecimento especial meu, pedindo desculpa por este "prefácio" da minha autoria, seguramente menor e logo, dispensável face à superior qualidade do texto abaixo.
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“Capas Negras" é um filme português, realizado por Armando de Miranda em 1947. Tem argumento de Alberto Barbosa e José Galhardo. Os principais actores são Amália Rodrigues, Alberto Ribeiro e Artur Agostinho, Vasco Morgado, Barroso Lopes, Humberto Madeira, António Sacramento e Graziela Mendes.
O filme foi estreado em Maio de 1947 e bateu todos os recordes de exibição até então. A seu lado está Alberto Ribeiro. Foi gravado na Real República do Rás-Teparta, na Rua dos Estudos, em Coimbra. Esta república viria mais tarde a mudar-se para o n.º 6 da Rua da Matemática, onde ainda hoje se encontra, em virtude da demolição de casas de habitação da alta coimbrã para construção das Faculdades. "Capas Negras" esteve 22 semanas em cartaz, tornando-se no maior sucesso do cinema português. Amália obteve o maior sucesso como actriz.”
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Capas_Negras
Não admira que o filme (disponível em http://www.youtube.com/watch?v=2wK6oQzd07g) tenha feito tanto furor à altura – atente-se no elenco. O enquadramento, em si, num espaço físico, social e “etário” que assume quase as proporções de mito – a Coimbra dos relatos humorísticos e saudosos de Trindade Coelho, de Antão de Vasconcelos e de tantos outros que dão sentido à famosa quadra do Vira de Coimbra:
Coimbra, terra de encantos,
Fundo mistério é o seu:
Chega a ter saudades dela
Quem nunca nela viveu.
Fundo mistério é o seu:
Chega a ter saudades dela
Quem nunca nela viveu.
O encanto do filme reside precisamente na evocação desse espaço-tempo de sonho, que faz com que cada português sinta Coimbra um pouco também como sua e se reveja nas aventuras, venturas e desventuras de uma cidade eternamente jovem.
E é como “documentário” desse “sonho” - passe a contradição – que a película se torna especialmente eficaz.
Para nós, o filme começa a ter interesse a partir de 0:51:41, altura em que a acção se transfere para o Porto
Particularmente interessante é o discurso feito no jantar de despedida do “Coca-Bichinhos”. Antes de anunciar a partida do colega para o Porto, prática corrente à época – e que explica os fortíssimos laços que unem as duas academias e a influência (e até certo ponto descaracterização) que a praxe portuense sofreu por parte da praxe coimbrã(1), o “Manecas” (Artur Agostinho) proclama:
Estamos aqui reunidos na tasca da Ti’ Zefa para festejar o honroso convite que foi dirigido à Tuna e ao Orfeão de Coimbra para se irem exibir triunfalmente em terras de Espanha.
O filme segue o seu curso, com imagens do Porto dos anos 40 (Estação de S. Bento, pontes de D. Maria e D. Luís, Aliados, a Foz, o Coliseu...)
A 1:20:09, surge uma página de jornal com a seguinte “notícia”:
Partiu para Espanha a Tuna Académica de Coimbra que leva como cantor de fados o distinto advogado Dr. José Duarte.
O Jornal de Notícias prossegue:
MADRID, 9 – Estreou-se a Tuna Académica de Coimbra. Êxito extraordinário do Dr. José Duarte.
O Diário de Coimbra dá a seguinte nota:
VIGO, 26 – A Tuna e o Orfeon de Coimbra obtiveram um triunfo completo nesta cidade.
E, n’O Comércio do Porto:
De regresso da Galiza chegam hoje ao Porto a Tuna e o Orfeon da Academia de Coimbra.
Este destaque dado às deslocações dos agrupamentos tuneris portugueses ao estrangeiro (sobretudo a Espanha) era prática corrente. E era indiferente que a tuna fosse do Porto ou de Coimbra: a simpatia era idêntica, sendo os estudantes acarinhados pela imprensa de norte a sul do País.
Especialmente interessante para o “Portus Cale Tunae” é o facto de uma tuna ser filmada nesta cidade.
Em 1:20:46, vemos os tunos de Coimbra a sair da Estação de S. Bento, onde foram recebidos pela população e pelos colegas do Porto
, saindo do recinto sob um fortíssimo aplauso e vivas a Coimbra. E nova
cena deliciosa: o “Zé Duarte”, ainda trajado, acabado de chegar da
digressão, corre ao Tribunal a defender a sua amada “Maria de Lisboa”,
que desprezara injustamente. A quantos de nós não sucedeu já irmos para o
trabalho ainda trajados, depois de uma digressão ao estrangeiro... ou
às janelas das vizinhas...
Contudo, é a partir de 1:30:39 que assistimos a algo inédito – e, cremos nós, irrepetido - em todo o cinema português: uma tuna no grande ecrã.
A cena é filmada na escadaria do Tribunal de S. João Novo (Tribunal da Relação). A música – e sobretudo a letra – transportam o presidente do Tribunal para os seus tempos de juventude em Coimbra e abafam por completo o discurso moralista do Procurador do Ministério Público. A assistência já não consegue ouvir os argumentos sisudos, legalistas e eloquentes do esforçado tribuno. Debalde tenta fazer-se ouvir, mas já ninguém lhe presta atenção, transportados que estão todos pela música que chega do exterior.
E o filme termina justamente nessa nota etérea e quase onírica. A Tuna vem salvar uma inocente das garras de uma lei que se refugia nos aspectos formalistas para obter uma condenação exemplar. No entanto, e pela voz da Tuna, “outro valor mais alto se alevanta”: o amor redime mais que a justiça – um acto de justiça poética, na verdadeira acepção da palavra.
Pelo meio da trama ingénua, alguns aspectos importa retirar, no que à tuna concerne:
1) A popularidade e a estima de que a tuna estudantil goza junto da população em geral;
2) O sentido de fraternidade entre os elementos das duas academias, sem bairrismos bacocos e despropositados;
3) Curiosamente, o “estigma” social de que o “Dr. José Duarte” foi vítima, pelo facto de ser “fadista”, manifesto na ausência de clientes, que desconfiavam das competências científicas do “advogado-cantor”, preconceito que ainda hoje se faz sentir sobre os tunos;
4) A postura da tuna, que interpreta o tema de pé, na escadaria, algo absolutamente incomum numa altura em que as tunas actuavam sentadas;
5) Sendo de Coimbra, a tuna actua de capa pelos ombros, não de capa traçada, ao contrário do que tanto se tem apregoado e praticado;
6) A nível de instrumentos, temos bandolim, guitarras portuguesas e guitarras clássicas, sem qualquer instrumento de percussão visível.
Vimos isto e muitas mais coisas. Mas tão importante como o que vimos é aquilo que não vimos:
a) Vimos camaradagem franca e leal entre estudantes, independentemente da sua posição hierárquica, e entre academias;
b) Vimos uma espera de uma trupe a um caloiro;
c) Vimos que o veterano aparece para pedir protecção para o caloiro, não para agravar ainda mais a situação;
d) Vimos que a trupe pergunta “O que é pela praxe?” – não disparates em latinório macarrónico, como “Quid Praxis?”;
e) Vimos veteranos sempre trajados;
f) Vimos o à-vontade com que o caloiro “Já-cá-canta” (Humberto Madeira) convive com os outros repúblicos, mesmo com os veteranos, tratando-os por “tu”;
g) Vimos colegas mais velhos a brincar com colegas mais novos;
h) Não vimos imbecis a mandar “encher” e a berrar aos ouvidos;
i) Não vimos caloiros de olhos no chão, em posições humilhantes e com ar assustado;
j) Não vimos tanta imbecilidade a que hoje em dia se assiste gratuitamente, praticada em nome de uma invenção doentia a que infelizmente se colou com cuspo o nome de “praxe”;
k) Não vimos pretensos manda-chuvas em bicos de pés, a quererem ficar numa fotografia para a qual não foram convidados e onde fazem tanta falta como uma viola num enterro;
l) Não vimos a tuna a pedir licença fosse a quem fosse para ir onde lhe apeteceu ou fazer o que bem entendeu.
Pouco mais de uma hora e meia passada com um sorriso nos lábios. Definitivamente, um filme a ver e divulgar.
(1) De entre os nomes destes “imigrantes”, avulta o de António Pinho Brojo, que se deslocou para a Invicta pelas mesmas exactas razões que o nosso “Coca-Bichinhos”: frequentar a Faculdade de Farmácia. Este trânsito foi uma constante até aos anos 80, sendo frequente os estudantes de ambas as academias concluírem o curso na outra, fosse para seguirem planos de estudos que as respectivas universidades não ofereciam (Engenharia era um caso paradigmático), fosse para tentarem concluir uma cadeira cujo catedrático os tivesse “tomado de ponta”.
1 comentário:
A alínea k), mesmo dissimulada é sublime.
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