Faço um pequeno rewind para vos deixar com um documento extremamente importante a nivel histórico, que contem uma série de informações que, devidamente dissecadas, alicerçam alguns pontos de vista também eles altamente pertinentes para a compreensão da génese quer da Tuna no Porto quer até da génese do fenómeno tuneril em Portugal.
Pese a sua extensão, aconselho leitura atenta bem como as devidas conclusões a retirar do mesmo.
"O primeiro passeio da Tuna Universitária do Porto
notas coligidas por
José dos Reis Gonçalves
15 Maio 1937
O primeiro passeio da Tuna Universitária do Porto
Terminadas as comemorações centenárias da Academia Politécnica e Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a Tuna Universitária do Porto pensou realizar um sarau de arte numa das cidades da província com o intuito de criar nos seus componentes a ideia de agregação num tão simpático agrupamento musical, pois pelo facto de ter sido criada para colaborar nas festas dos centenários, não deveria desmantelar-se no final delas, porque prometia ser um laço de união entre os alunos das várias Faculdades e um meio de maior cultura dos mesmos estudantes.
A iniciativa ganhou raízes, e decorridos poucos dias já estava assegurada a viagem à linda cidade de Vila Real. O jornal da cidade “O Vilarealense” foi o primeiro a dar o alarme, e no dia 29 de abril de 1937, já publicava a notícia seguinte:
“Em 15 de maio próximo visita a nossa terra a Tuna Académica da Universidade do Porto. Os simpáticos hóspedes virão em camionetes pelo Marão, onde tencionam demorar umas horas num alegre pic-nic.
À noite realizam um sarau de gala no Teatro Avenida, revertendo o produto, se o houver, em favor do Hospital da Misericórdia. É madrinha do grupo a professora nossa gentil conterrânea senhora D. Danila Cardona.”
Entretanto a troca de correspondência continuava, intensificaram-se os preparativos, faziam-se ensaios e a imprensa da cidade visitada lançava, pelo mesmo jornal, nova notícia:
“Lançamos na quinta-feira a alvoroçante nova da vinda, a Vila Real, no próximo dia 15, da Tuna Académica da Universidade do Porto.
Começaram os preparativos para a recepção, sendo incansável a madrinha senhora D. Danila Cardona, que não tem tido mãos a medir, juntamente com as suas distintas colaboradoras.
Os estudantes, como dissemos, vêm pelo Marão. Na Câmara e no Liceu ser-lhes-hão dadas as boas vindas. Depois a Universidade homenageará o seu antigo aluno Carvalho de Araújo. Às 21 horas e meia, récita de gala no “Avenida”. E, por fim, baile no Clube até de madrugada. O Grupo, diz-nos um dos seus Delegados, traz de tudo e para tudo: futuros médicos, para os futuros doentes; futuros farmaceuticos, para os futuros amigos dos xaropes; futuros engenheiros, para os futuros partidários do progresso; futuros matemáticos, para as futuras donas de casa; futuros naturalistas, para as futuras amadoras de hortliças e galinhas; futuros químicos e físicos para o que der e vier, etc.
Boa disposição, apetite, alegria, mocidade e animação. Magnífica música, tangos, fados e guitarradas, solos de harpa e uma comédia (muito boa!), variedades, preços baratos.
O dia 15 do corrente vai ficar memorável em Vila Real. O nosso desejo é que os ilustres hóspedes levem a melhor impressão da Princesa do Corgo.”
Chegado o dia ansiado, efectuou-se a partida no meio da maior alegria. A imprensa do Porto, sempre pronta a servir, manifestou-se. O jornal “O Primeiro de Janeiro” escrevia:
“Vila Real, a formosa e hospitaleira cidade transmontana, recebe hoje a visita duma embaixada artística dos alunos da Universidade do Porto.
Pela primeira vez, após a sua recente reorganização, a Tuna Universitária do Pôrto, sob a direcção do proficiente e distinto”maestro” Afonso Valentim, vai realizar a outra terra um espectáculo – espectáculo com um programa selecto e de responsabilidade – que terá, além da nota artísitica, uma outra que nos agrada salientar: destinar-se o produto líquido da récita ao Hospital de Vila Real. Com a Tuna, segue também o seu corpo cénico, que se apresentou pela primeira vez e sob a direcção do nosso presado colega Ataíde Perry, que para este espectáculo escreveu, propositadamente, uma comédia em um acto e dois quadros, intitulada: “Quem tem capa...”, interpretada por alunos das nossas Faculdades.
A par da alegria e entusiasmo que a excursão desperta entre os estudantes, está a das senhoras da Comissão de Honra de Vila Real, á frente das quais se encontra a senhora D. Danila Cardona, que, assim, iniciará, com a sua assinatura, o “Livro de Honra” das Madrinhas da Tuna.
Vila Real estará hoje, portanto, em festa e orgulhosa da visita da Tuna Universitária do Porto.”
A seguir, continua o jornal:
“ A partida tem lugar pelas 7,30 da Praça Parada Leitão, frente à Faculdade de Ciências. Em camioneta seguirão os excursionistas, em número de 60, acompanhados pelos directores artísticos e representantes da Imprensa diária desta cidade.
Amarante será o ponto da primeira paragem, a fim de se almoçar. À chegada a Vila Real, haverá recepção no Govêrno Civil, Câmara Municipal e Liceu, após o que se prestará, junto do respectivo monumento, homenagem a Carvalho de Araújo.
À noite, no Teatro Avenida, realiza-se o espectáculo com a Tuna, comédia “Quem tem capa...”, Orquestra de Tangos, Guitarradas, números cómicos, canções brasileiras e fados.
Fará a apresentação da Tuna o distinto professor do liceu de Vila Real, senhor Dr. Santana Dionísio, formado pela extinta Faculdade de Letras do Porto.
Em virtude do recente luto do guitarrista de medicina e infatigável presidente da direcção da Tuna, senhor Tiago Ferreira, será orador oficial da embaixada académica o estudante Maldonado Freitas.
Após o espectáculo, realiza-se o baile oferecido pelas senhoras da Comissão de Honra, em homenagem aos visitantes e muito especialmente á Direcção da Tuna, constituída pelos académicos: Tiago Ferreira e Reis Gonçalves, bem merecedores de aplausos e elogios.”
O que depois da partida se passou, melhor dirá ainda e mais uma vez a imprensa desta cidade. Assim o jornal “O Primeiro de Janeiro” inseria nas suas colunas o seguinte: “A visita da Tuna Universitária do Porto a Vila Real constituiu para aquele aplaudido agrupamento artístico e portanto para o seu proficiente “maestro” Afonso Valentim, um novo triunfo.
Do Porto até à formosa cidade transmontana foram os nossos académicos alvo de grandes manifestações de simpatia, principalmente em Amarante, onde se realizou o almoço.
Após uma paragem no alto do Marão, a fim de se tirarem algumas fotografias, as duas camionetas atacaram a última parte do percuso, entrando em Vila Real pelas 15,30 onde aguardavam a chegada da Tuna Universitária os estudantes do Liceu Camilo Castelo Branco. Palmas, vivas entusiásticas e troca de bandeiras, seguindo-se para a Câmara Municipal, onde o senhor Presidente da Comissão Administrativa, senhor Emídio Roque da Silveira, lhes apresenta, em nome do Município, cumprimentos de boas-vindas dizendo que toda a cidade se sente orgulhosa com aquela visita. O estudante universitário Maldonado Freitas agradece em nome dos seus colegas, tecendo um hino às belezas de Portugal. As manifestações de regozijo continuam. No Liceu, o reitor daquele importante estabelecimento de ensino, senhor Dr. Joaquim Almeida da Costa, recorda com saudade os tempos em que frequentava a Universidade e trazia aos ombros uma capa de estudante, tendo para os visitantes palavras de admiração. Maldonado Freitas aproveitando as palavras do Reitor, coloca-lhe uma capa, ouvindo-se então uma demorada salva de palmas. Fala, por último, o presidente da Academia Vilarealenese, estudante Albano Ribeiro. Novos aplausos e o cortejo dirige-se para o Governo Civil, onde apresentam, também, cumprimentos, os excurcionistas.
Vila Real movimenta-se. Em todas as janelas vêem-se agora senhoras que saúdam os estudantes universitários. Frente ao monumento a Carvalho de Araújo, o presidente da Direcção da Tuna, o quintanista de Medicina, senhor Tiago Ferreira, que num espírito de abnegação, embora ferido recentemente por profundo golpe, seguiu para Vila Real em comboio, a fim de não deixar de cumprir a sua missão, evoca a memória do heroico comandante do “Augusto de Castilho” pedindo, como homenagem, um minuto de silêncio. A aluna universditária, senhora D. Alcinda de Souza coloca, então, no pedestal do monumento um lindo ramo de cravos.
Terminados os actos oficiais os estudantes visitam os pontos mais belos de Vila Real, animando com a sua presença e alegria as ruas da hospitaleira cidade.
Após o jantar, no Teatro Avenida, realizou-se o anunciado espectáculo, que decorreu com brilho e entusiasmo.
O senhor Dr. Santana Dionísio, distinto professor do Liceu Camilo Castelo Branco, fez, num belo discurso, a apresentação da Tuna, agradecendo-lhe o estudante Tiago Ferreira que, convém frisar nestas linhas, após este acto, recolheu ao Hotel, não tomando parte, portanto, em qualquer manifestação festiva além das oficiais.
A tuna foi em todos os seus números aplaudidíssima e o “maestro” Afonso Valentim distinguido com chamadas especiais. O corpo cénico, constituído pelos estudantes D. Maria de Lourdes Melo, D. Alcinda de Souza, D. Maria Luisa Couto, D. Aida de Brito e senhores Albano Costa, José Meireles, Sá Lima, José Rebelo, Fernando Brochado e José Beleza, interpretaram com segurança e correcção, ouvindo no final muitas palmas, a engraçada comédia em 1 acto e 2 quadros “Quem tem capa...”, original do nosso prezado colega Ataíde Perry e por ele escrita propositadamenet para o corpo cénico de que é director artísitico.
No acto variado a “Orquestra de Tangos” constituiu um sucesso e as “Guitarradas” foram muito aplaudidas assim como, em número de declamação, D. Alcinda de Souza, Albano Mata e José Meireles; Sá Lima em sortes de ilusionismo e Hernâni Oliveira em solo de harpa.
Terminado o espectáculo seguiu-se no salão do Clube, o baile oferecido pelas senhoras D. Maria Luísa Guedes, D. Maria Irene Mota Costa, D. Giginha Lameirão, D. Augusta Ruas, e D. Danila Cardona, a gentilíssima Madrinha da Tuna a quem, no espectáculo, foi oferecida uma linda lembrança,
O baile que esteve animadíssimo e foi optimamente servido, acabou depois das 7 da manhã de domingo, servindo ainda de pretexto para que o excelente elemento da Tuna, senhor Mário Delgado, em números de canto e música, fosse aplaudidíssimo.
Às 8,30 de anteontem a Tuna Universitária abandonava Vila Real trazendo e deixando inúmeras saudades. Constituiu, portanto, a primeira digressão artísitica da Tuna, um assínalado êxito que muito honrando a nossa Academia, honra também a Universidade do Porto. Para isso, muito concorreram, pela perfeita organização do passeio, os estudantes: Tiago Ferreira, Reis Gonçalves, José Rebelo e Fernando Vilano.”
Também pela pena do distinto jornalista Hugo Rocha, “O Comércio do Porto” afirmava:
“? Quem não sabe o que é uma excursão de estudantes? Às vezes, é isto: uma excursão que começa no princípio e acaba no meio, sem distinguir o fim...Outras vezes, mais raras, tem princípio, meio e fim. Quando é assim, quando vai de fio a pavio, em perfeita regularidade, quando se assemelha a um corpo normal, com cabeça, tronco e membros, há quem a ache banal, há quem sustente que não presta, há quem encolha os ombros, desdenhosamente. É que a incerteza, a aventura, o desconhecimento do que vai acontecer são, ainda, para quem pensa de tal modo, os melhores atributos de uma excursão de estudantes, duma excursão cem por cento académica...
Quando tudo é certo, regrado, natural, quando uma excursão académica se parece com uma excursão de grupo de vinte amigos, aquele espírito aventuroso, despreocupado, fantasista que anima o estudante de raça, experimenta uma desilusão, tanto maior quanto maior haja sido a regularidade, o bom começo, o melhor decurso e o óptimo desfecho da empresa em que participam.
Certa vez, um antigo condiscípulo, estudante inveterado no hábito da boémia que tão poucas abencerragens conta, na actualidade, confessava-nos, amarfanhado pela garra dum sincero pesar: a nossa excursão foi a mais enfadonha possível. Imagina que chegamos, exactamente, como partimos. E, para cúmulo, ainda trouxemos dinheiro no bolso...
Faça-se, porém, justiça a todos, e a todas as excursões. Há excursões académicas que, apesar de toda a sua regularidade, do seu princípio, do seu meio e do seu fim normalissimos, são, ainda, encantadoras, que são dignas, portanto, de evocação saudosa. Está neste acso a excursão da Tuna Universitária do Porto, segunda série da antiga Tuna Académica do Porto e milagre de entusiásmo e de tenacidade dum grupo de estudantes da nossa Universidade e, principalmente, do esforço e da devoção do Maestro Afonso Valentim.
Não assistimos ao princípio nem ao fim. Só nos foi possível assistir a uma parte – a principal aliás – do meio. Isso bastou, todavia, para que nos convencêssemos, se é que não estávamos, de antemão, convencidos, de que se tratava duma excursão académica das tais que começam, decorrem e acabam bem, duma excursão enfim, de tipo normal e sério, exemplarmente sério.
? É isso razão, porém, para se inferir que, obedecendo aos cânones da regularidade, ela não se destacou pela graça da mocidade, pela vibração do entusiasmo, pelo bulício e pela exuberância da saúde espiritual? De modo nenhum. É mister acentuar, até, que esta excursão, com toda a sua normalidade, com toda a sua seriedade, se distinguiu, extraordinariamente, pela beleza, e grande, colorida e olente flor que não feneceu, ainda, no jardim das tradições estudantis.
Contemos, porém, em singelo epítase que não pretende ser reportagem circunstanciada, como decorreu essa excursão académica que teve a meta numa cidade formosa e acolhedora entre as mais formosas e acolhedoras: Vila Real.
Às 9 horas da manhã, nesse sábado primaveril, propício à alegria da mocidade e ao prazer da viagem, a caravana abalou. Dois autocarros apojados de capas negras, de instrumentos músicais, de sadia despreocupação. Fala-se de tudo – do tempo, da guerra espanhola, da coroação dos soberanos britânicos, dos passados, presentes futuros amores, da beleza da paisagem, das curvas da estrada, desagradáveis para quem é atreito ao enjôo, da festa desse dia, dos olhares femininos que, perturbantemente, se vão fixar sobre as capas e batinas e fitas da estudantada – menos da proximidade dos exames, da ferocidade dos lentes e do peso dos chumbos...
Depois, em Amarante, com o Tâmega a lembrar tropos aquilinos de António Cândido, alexandrinos brumosos de Teixeira de Pascoais, o almoço faz aumentar a vibração ansiosa do entusiasmo, fazendo diminuir a vibração ansiosa das paredes gástricas, exarcebada pela viagem e pelo ar puro, o melhor dos aperitivos...
Às 3 horas e meia da tarde, transposta a serra, a meia centena de estudantes, instalada nos cómodos estofos das duas viaturas, entram, triunfalmente, na capital da província de Trás-os-Montes e Alto-Douro. O Sol, com sua cornucópia ubérrima, derramava ouro líquido sobre a bela terra transmontana. O público, parado nos passeios, sorria para os excursionistas. E os excursionistas, das janelas e portinholas dos autocarros, sorriam para o público. Ora, este intercâmbio de sorrisos é promitente duma excelente recepção. Assim aconteceu.
A primeira visita oficial foi aos Paços do Concelho. O presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Vila Real, senhor Dr. Roque da Silveira, saúdou os excursionistas, afirmando-lhes que a cidade de Vila Real se sentia honrada com a visita da Tuna Universitária do Porto, conjunto artístico que já provara a sua elevada categoria sob a regência do maestro ilustre que é Afonso Valentim.
Maldonado de Freitas, um rapaz de pequeno corpo e alma grande que é finalista do curso de Farmácia e não tem papas na língua, quando é preciso dizer o que sente e o que pensa, proferiu o discurso protocolar de agaradecimento, declarando, com fogo nas palavras, que os componentes da Tuna Universitária do Porto se sentiam em Vila Real como nas suas próprias casas. E não se esqueceu de acentuar que aquela excursão de estudantes à cidade do marinheiro heróico e glorioso que se chamava Carvalho de Araújo tinha, a par do artísitico, o significado fraternal, pois poderia contribuir para o estreitamento das relações entre o Porto e Vila Real que, por sôbre o Marão, deveriam fraternalmente, abraçar-se. Houve palmas. As capas agitaram-se, como asas negras de águias gigantescas, após o vôo sobre a serra vasta...E, dali, toda a estudantada seguiu para o Liceu. Grupo compacto, a preto e branco, monotonia de cores alterada, graciosamente, pela meia dúzia de vestidos das estudantes, que integradas no corpo único da Tuna, tomaram parte na excursão, todos os olhos o fitavam, curiosa, amável, acolhedoramente.
O reitor daquele estabelecimento de ensino, senhor dr. Almeida e Costa, proferiu o discurso de saudação, afectuoso e brilhante. Maldonando de Freitas, uma vez mais, respondeu, em nome da Tuna, falando do intercâmbio intelectual a que aquela embaixada universitária portuense se propunha também.
Como presidente da academia vilarealense, o estudante Albano Ribeiro associou-se, com palavras timbradas pela emoção, àquele acto de homenagem, no primeiro estabelecimento de ensino de Vila Real, aos membros da Tuna Universitária do Porto. Reboaram, também, estrepitosas e prolongadas, as palmas de visitantes e visitados. E a falange estuante dos tunos portuenses saíu do Liceu, encaminhando-se para o Governo Civil.
O chefe do distrito, senhor tenente Assis Gonçalves, estava ausente. Foi o seu secretário quem recebeu a embaixada e agradeceu os cumprimentos que ela levava ao representante do Governo na sede do distrito.
Não estavam findas, porém, as solenidades da chegada. Junto do monumento a Carvalho de Araújo, um poema épico lavrado em granito e bronze, os excursionistas detiveram-se. Um instante de recolhimento espiritual. E o quintanista de medicina Tiago Ferreira, de luto pesado –seu pai morrera, poucos dias antes -, improvisou uma saudação emocionada à memória do comandante do “Augusto de Castilho”, pedindo que, para melhor ser evocada, os seus companheiros se conservassem, um minuto , em votivo silêncio . E foi impressionante a cerimónia, naquela avenida que a estátua do herói domina, o braço estendido, o olhar a direito, a atitude enérgica do comando – do comando supremo, do supremo sacrifício pela honra de Portugal.
Uma estudante universitária, D. Alcinda de Souza, pousou um ramo de cravos no soco do monumento. Era a oferta da mocidade académica, uma oferta simbólica, porque os cravos valem como um emblema da mocidade...
A embaixada académica segue para o Clube, o alfobre da melhor sociedade de Vila Real. As mais lindas raparigas da cidade recebem, ali, os excursionistas. D. Danila Cardona, a madrinha da Tuna Universitária do Porto, preside, pela sua qualidade venerável, à solenidade que se traduz num delicioso ”Porto de Honra”, devidamente honrado. E Maldonado de Freitas, em meia dúzia de palavras chamejantes – tanta beleza e tanta graça femininas haviam ateado as chamas da sua emoção – agradece aquela recepção que passava de palavras para transcender ao supra-sumo da doçaria regional e do melhor vinho da orbe.
Depois, rapazes e raparigas da excursão espalharam-se pela cidade, visitando o que, em Vila Real, é digno de visita, - ou, antes, uma pequena parte, porque para visitarem tudo, não lhes chegava um dia inteiro, quanto mais um fim de tarde. E foi a concluirem essas visitas de carácter turístico que os fomos encontrar, quando, por volta das 19 horas e meia, o automóvel que nos conduzia, mais a Afonso Valentim e sua esposa, parou em frente da porta do hotel e dele passaram para a sala de jantar os nossos corpos derreados, sem tempo nem vontade para digressões citadinas... Uma substancialíssima sopa de legumes, único alimento consentido pela má digestão dum almoço nupcial, restaurou as energias dos recem-chegados e permitiu a Afonso Valentim aquela firmeza na batuta, imprescindível a uma regência perfeita.
O Teatro Avenida, que não envergonha Vila Real, não se encheu. Verificamos mesmo, com natural desgosto, que o público local não correspondeu, como era lícito esperar, à iniciativa da Tuna Universitária do Porto, tratando-se, como se tratava, duma récita de gala e, sobretudo, de beneficência
Todavia, é mister reconhecer que, entre as centenas de pessoas que se viam naquela casa de espectáculos, figuravam algumas das melhores famílias de Vila Real. Certo, o escol da cidade estava ali. E estavam ali, guarnecendo os camarotes, num dos quais se via o governador civil do distrito, as mais lindas senhoras da capital da província.
Capas negras e pastas artísticas com as fitas representativas das quatro Faculdades da Universidade do Porto ornavam o friso dos camarotes.
Formada a Tuna, com Afonso Valentim à frente, o senhor Dr. Santana Dionísio, professor do liceu local, escritor e conferencista distintíssimo, adiantou-se, capa negra pelos ombros, para proferir o discurso de apresentação. Voz calma e grave, começou:
“Alguns estudantes da Universidade do Porto decidiram vir até nós trazer um pouco da expressão da sua mocidade, da sua alegria, dos seus dons artísticos. Invocando o nosso passado de estudante da mesma Universidade, quiseram algumas senhoras incumbir-nos de vo-los apresentar. É o que vamos fazer da maneira mais breve.”
E acrescenta:
“ Tendo reflectido um instante sobre o que deveria resultar de espiritualmente proveitoso desta apresentação – pois, por princípio, detestamos as tarefas e situações puramente decorativas – achamos que, por um lado, tratando-se de um sarau musical, no qual vai ouvir-se um pouco de Beethoven, de Schubert, de Grieg, o melhor que deveríamos fazer, nesta circunstância, seria dizer alguma coisa sobre a arte que será o tema fundamental deste serão, tentando exprimir algumas sugestões sobre o que será a música, qual a sua origem, qual a razão, enfim, da misteriosa necessidade que dela existe, e existirá sempre, na alma humana. Por outro lado, devendo dar diante dos moços visitantes alguma prova de que não só temos em estimação a arte que cultivam mas ainda que não desconhecemos as origens da sua agremiação, e o espírito que a anima, afigurou-se-nos que o melhor tributo de simpatia que, em nome de Vila Real, poderíamos prestar aos seus hóspedes desta noite, seria o evocar diante deles uma das figuras que mais grata deve ser às suas memórias – a do organizador e regente da Tuna Académica do Porto da última geração escolar dessa cidade, Modesto Osório.”
Falou, depois, da música, definindo-a segundo o pensamento do filósofo dos Sonetos:
“- Na sua opinião os povos antigos não tiveram da música senão os seus elementos: o ritmo e a melodia. Foi com a inquietação do homem moderno, de educação sentimental, melancólico, revoltado, versátil, que a música teria aparecido. Antero acreditava, porém, que esta inquietação era uma doença transitória do homem; com o tempo o seu espírito pacificar-se-ia pela razão, pela vigilância crítica, pelo conhecimento progressivo e lúcido das coisas. Que seria então da música? No parecer do grande poeta filósofo, à medida que o homem fosse caminhando no sentido dessa racionalização, a música iria sendo abandonada, até desaparecer um dia. A sua arte estava ligada à existência do homem, veemente, inquieto, perturbado por entusiasmos fugazes, quebrantos, golpes de melancolia. No dia em que sobre a terra o homem se curasse pelo pensamento desse humorismo, a música tinha finda a sua missão: deixaria de existir.”
Depois de analisar o conceito anteriano, o senhor Dr. Santana Dionísio acrescentou:
“-Na verdade a música é a mais perene e humana das artes. Se ela é ou não eterna, não é legítimo afirmá-lo. O que pode assegurar-se é que ela só desaparecerá com o último homem. Onde está a alma humana estão a esperança e a desesperança indefinidas, está a reminiscência de não se saber o quê, está o devaneio e o sonho. Qual a voz para exprimir as causas desses indeterminados estados de alma? Esses anseios sem objectivo? Esses inefáveis anelos do nosso espírito? Todas as Artes nasceram para o tentar dizer. Mas verdadeiramente só a Música levou ao extremo da veemência e ao mesmo tempo da discrição essa aspiração de entendimento essencial e comunicação essencial do mundo e de nós próprios. A música é uma espécie de brisa, ou antes, um misto de vento e claridade, que abre no nevoeiro do insondável abismo que é o Universo, fundas clareiras através dos quais, em certos instantes fugitivos e supremos, parece antever-se a sua mais recôndita essencialidade. Como é que o homem poderá prescindir algum dia dela?
Ao contrário de Antero, o que é verosímil prever é que o homem quanto mais conscializado for, mais profundamente necessitado será da música.”
E, depois de uma enternecida referência a Modesto Osório, que fundou e dirigiu a antiga Tuna Académica do Porto, o senhor dr. Santana Dionísio rematou o seu brilhante discurso, focando, ainda, a personalidade do artista de quem foi amigo e com quem privou:
“-Seja como fôr, o que nós queríamos nesta ocasião sugerir é que é pela invisivél influência desse obscuro estudante e artista que por ventura devemos o prazer íntinmo de receber esta visita dos estudantes do Porto, aos quais desejo, em nome de todos os que vão escutá-los, apresentar as expressões mais cordiais de boas vindas.”
O talentoso professor saudou, também, o maestro Afonso Valentim, o obreiro daquele milagre artístico do renascimento da Tuna Universitária do Porto, afirmando-lhe a sua admiração sincera. Recebeu muitos e merecidos aplausos.
Tiago Ferreira, em nome da Tuna, falou, em seguida. Discurso sem pretensões oratórias, em tom de conversa e, por vezes, de desabafo. Aludindo aos esforços envidados para que aquela excursão se efectuasse, o distinto estudante manifestou o seu reconhecimento para com quantos tinham contribuído, por qualquer modo, para a realização daquele sarau. Historiou os prolegómenos da organização da Tuna, rendeu entusiástica homenagem a Afonso Valentim e descreveu diligências efecuadas para que aquela jornada se efectuasse. Foi também muito aplaudido.
Com todo o público de pé, os tunos, de pé também, tocaram o Hino Académico, do dr. Aires Borges, que provocou as primeiras palmas entusiásticas e vibrantes. E, sucessivamente, com notável afinação e homogeneidade instrumental, executaram “Serenade de Mandolines”, de Desormes, “Momento musical”, de Schubert, e “Alma portuguesa”, de Modesto Osório. Afonso Valentim e os seus instrumentistas, cuja apresentação confirmou, em absoluto, o êxito obtido nas récitas estudantis comemorativas do I Centenário da Academia Politécnica e da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, foram distinguidos com aplausos carinhosos, demorados, insistentes.
Intervalo. E o pano, de novo, sobe para a representação da comédia “Quem tem capa...”, que Ataíde Perry, nosso distinto colega da Imprensa, escreveu, expressamente, para aquele sarau e que os estudantes José Meireles, Maria de Lourdes Melo, Alcinda de Souza, Maria Luiza Costa, Albano Costa, João Sá Lima, Fernando Brochado, José Rebelo e Aida Brito interpretaram, com muito acerto, observando o sentido cómico em que o autor a orientou. O público gostou da comédia e gostou da actuação dos vários personagens. Rir a fartar. E não regateou aplausos.
O acto de variedades agradou, também, sem reservas. A Orquestra Universitária de Tangos, que tanto se notabilizou no Teatro Rivoli, foi forçada a repetir os seus dois números. A cadência e a sentimentalidade dos tangos impressionaram o público, que se deixou embalar por aquelas melodias lânguidas e dolentes...
As guitarradas e os fados foram o complemento desse embalo sentimental, sobretudo as primeiras, a cargo de autênticos “virtuoses” do mais sentimental de todos os instrumentos musicais, aquele que, como cantava Hilário, tem a forma de um coração...
Depois, Alcinda de Sousa, Albano Costa e José Meireles divertiram o público com recitativos de feição cómica, já para fazer rir, já para fazer sorrir. Hernani de Oliveira, filho da conhecida e conceituada professora de harpa senhora D. Juliana Falconieri de Oliveira, apresentou-se, a seguir, como harpista de real talento, que é. Uma composição de Hasselmans e uma, deveras graciosa, de sua própria autoria. Aplausos significativos. E João Sá Lima, actor, ilusionista, declamador, o mais completo dos membros do corpo cénico da Tuna Universitária do Porto, mostrou ao público as suas habilidades, habilidades que, um dia, se a formatura – longe vá o agoiro! – não lhe proporcionar uma carreira próspera e feliz, o podem, com todas as probabilidades de êxito, levar, definitivamente, ao palco. Eis o melhor elogio que lhe podemos e devemos consagrar.
A última parte da récita foi preenchida pela Tuna, que tocou, do mesmo modo admirável, ”Marcha Turca” de “As ruínas de Atenas”, de Beethoven, “La mort d’Aase”, de Grieg, “Serenata”, de Schubert, e “Adios Coruña”, de Modesto Osório. Mário Delgado, violinista de talento, tocou, com inexcedível mimo, os solos. Foi, justamente, distinguido com fortes aplausos. É um artista que, onde quer que se apresente, se impõe. D. Danila Cardona, a madrinha da Tuna, no princípio do sarau, foi ao palco, colocando na bandeira daquele agrupamento artístico um formoso laço. O acto, como é óbvio, foi carinhosamente, aplaudido.
Do Teatro Avenida – era cerca da uma hora e meia da madrugada – os membros da Tuna Universitária do Porto e quem os acompanhava passaram para o Clube, refulgente, já, de luzes, de vestidos, de peitilhos engomados, de jóias. A melhor sociedade vilarealense estava, ali, representada pelas mais lindas e elegantes raparigas da cidade. Era aquele o remate brilhante da recepção brilhante dispensada por Vila Real aos seus hóspedes académicos.
Um grupo de distintas vilarealenses, as senhoras D. Maria Luiza Guedes, D. Maria Luiza Costa Lobo, D. Maria Irene Mota Costa, D. Giginha Lameirão, D. Maria Augusta Ruas e D. Danila Cardona, a madrinha da Tuna, promoveu e organizou este baile que se assinalou por uma animação invulgar. Uma boa orquestra exibindo um programa consideravelmente moderno, manteve ao rubro o entusiasmo dos pares, fazendo-os rodopiar no soalho envernizado.
José Moreira, que nos conduziu no seu automóvel, às 7 horas da manhã, para Lamego, afirmava-nos que, no seu tempo de académico - e foi um dos mais irrequietos, irreverentes e engraçados estudantes da geração anterior – a estudantada se divertia mais e melhor...Apesar da opinião exigente de José Moreira, secundado, aliás, por muita gente, o baile foi dos mais animados e dos mais brilhantes a que, na província, teria assistido. D. Maria Luiza Guedes, a mais azougada e alegre das vilarealenses, bastava, por si só, para que o baile fosse, como foi, um prodígio de animação e brilho. O seu encanto comunicativo revolucionou os salões, fazendo dizer a um dos mais endiabrados rapazes da Tuna:
-Eis a última encarnação de Miss Diabo capaz de transformar num paraíso este inferno de fox-trots, de maxixes, de one-steps, de rumbas.
O copo-de-água, servido a meio do baile, foi o triunfo pleno da doçaria regional. O tuno Sá Lima afirmava a quem o quisesse ouvir que a melhor das suas proezas de prestidigitador era devorar dois pastéis daqueles que coloriam as travessas enquanto qualquer outra pessoa só conseguia mastigar um.
Quase às 7 horas da manhã, quando a orquestra gemia o derradeiro tango, havia quem invectivasse o sol, porque este viera lembrar a todos que era tempo de acabar o baile.
Tiago Gonçalves Ferreira, José Reis Gonçalves, Fernando Vilano e José Rebelo foram os membros da Tuna Universitária do Porto cuja devoção e cuja actividade mais concorreram para o êxito da jornada! Honra lhes seja!
Programa geral do espectáculo:
Teatro Avenida
15 de Maio de 1937, ás 9,30
Sarau promovido pela Tuna Universitária do Porto
Programa
I parte
a) Discurso de apresentação
pelo distinto professor Dr. Santana Dinísio
Saudação
pelo presidente da Tuna Dr. Tiago Ferreira
b) Hino Académico .... Dr. Aires Borges
1) Serenade de Mandolines... Desormes
2) Momento Musical... Schubert
3) Alma portuguesa... Modesto Osório
II parte
Quem tem capa...
Comédia em 1 acto e 2 quadros, original de Ataíde Perry.
Distribuição (por ordem de entrada)
Mário Canavezes José Meireles
D. Eufrázia Hermengarda Liberdade da Costa Maria Lourdes Melo
Madalena Caldas Alcinda Souza
Fernanda Palha Maria Luiza Costa
Rosa, criada Álvaro Costa
Paulo Capucho João Sá Lima
Alegria Fernando Brochado
Aleixo Baguinho José Carmo Rebelo
Aurora Capa Aida Brito
A acção passa-se no Porto. Actualidade
Fados. Canções. Guitarradas. Orquestra Universitária de Tangos.
Solos de Harpa, Monólogo, Ilusionismo etc.
III parte
1) Marcha Turca de ”As Ruínas de Atenas”... Beethoven
2) La mort d’Aase... Grieg
3) Serenata... Schubert
4) Adiós Coruña… Modesto Osório
Lista geral dos estudantes
a) Pessoas que acompanharam a Tuna:
Afonso Valentim e esposa
Ataíde Perry e esposa
Hugo Rocha e mãe de uma aluna
b) Estudantes:
1) Tunos
Mário Delgado – violino
Eugénio Pais Cardoso – violiono
Alfredo António Pina – violino
Rolando Costa – violino
Carlos Pinto Rodrigues – violino
Jorge Pereira M. Conceição – violino
Manuel Soares da Costa – violino
Elísio Santos Coelho – violino
Francisco Couceiro – violoino
Fernando Vilano – violino
José Reis Gonçalves – bandolim
Tiago Ferreira – violino
Hildilberto Osório Valdoleiros – bandolim
Angelo Vieira Araujo – bandolim
Ernesto A. Almeida Freire – bandolim
Joaquim Pereira Biscaia – bandolim
António da Silva Freitas – bandolim
Hernani Oliveira – harpa
Paulo Pombo – violão
Américo Volta – violão
Francisco C. Caldeira – violão
Albano M. da Costa – violão
António Carvalho Guerra – violão
Manuel A. Malafaia – violão
Francisco A. Malafaia – violão
Manuel Silva conde – violão
António Vieira Souza – violão
António Correia de Melo – violão
José Carmo Rebelo – flauta
Alfredo Dias Ferreira – violoncelo
António A. Souza Taveira – triangulo
2) Grupo cénico e variedades
Maria de Lourdes N. R.Melo
Alcinda Conceição F. M. Souza
Aida Melo de Brito
Maria Luiza Dias Costa
José da Silva Meireles
João Alexandre Sá Lima
José Alves Rocha Beleza
Lourival Ferreira Vilela
Fernando Brochado
Artur Vale de Serra – guitarra
Artur Maldonado Freitas – orador
José V. G. Sá Teixeira- piano
João Costa – piano
3) Adjuntos:
Maria Amélia de Castro
Jorge Delgado de Oliveira
Nuno Braga Brandão
Elísio Ferreira da Silva
4)Alunos que também acompanharam os tunos:
José Frederico Cepêda Ribeiro
Manuel Antunes Tôrres
Francisco J. Aguiar
Orlando E. Vale Almeida e Souza
Alberto Guimarães
Manuel Rodrigues de Azevedo
Nota
O texto que agora se apresenta foi transcrito de um pequeno bloco de notas intitulado O PRIMEIRO PASSEIO DA TUNA UNIVERSITÁRIA DO PORTO e oferecido pelo seu autor, o antigo tuno José dos Reis Gonçalves, em data imprecisa, à Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade do Porto. É constituído por seis pequenos cadernos - obtidos a partir da sobreposição de quartos de folha de papel costaneira - cosidos uns aos outros, revestidos por uma capa colada do mesmo tipo de material. Com um total de 112 páginas, só 109 e a capa se encontram manuscritas a tinta azul .
A transcrição está conforme o manuscrito de José dos Reis Gonçalves, realizado com base nas reportagens sobre o passeio da Tuna a Vila Real, em 1937, publicadas em O Primeiro de Janeiro, O Comércio do Porto e O Vilarealense, tendo-se apenas actualizado a ortografia usada nos referidos artigos de jornalísticos.
António Huet Gonçalves
AAOUP
Dezembro de 2009
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