quarta-feira, 16 de abril de 2008

Sobre o Traje Académico na Academia do Porto

Retirado do fantástico site http://www.geocities.com/portoacademico/ segue-se uma resenha histórica que mais do que a abordagem ao Traje, passa por dados históricos importantes e devidamente comprovados sobre a própria Academia.

"O governo saído da Revolução de Setembro de 1836, através do seu Ministro do Reino, Manuel da Silva Passos (Passos Manuel), procedeu a uma das mais profundas reformas na história do ensino em Portugal. Deve-se a essas reformas a multiplicação das "academias" no nosso país na segunda metade do século XIX. "

De facto, foi Passos Manuel quem criou, em 1836/37, a Academia Politécnica do Porto, a Escola Politécnica de Lisboa, as Escolas Médico-Cirúrgicas do Porto e Lisboa, as Academias de Belas-Artes destas cidades e (pelo menos "no papel") os liceus, nas capitais de distrito. Estas escolas, à excepção dos liceus, baseavam-se em pequenas escolas já existentes. Mas foram estas reformas que, para além de ampliarem o âmbito dos seus estudos, permitiram o aumento do número dos seus alunos, o que levou ao aparecimento de comunidades académicas (i.e., academias) em Lisboa e Porto. Os liceus, por outro lado, foram sendo instituídos na prática muito lentamente, mas cada novo liceu, fora de Lisboa, Porto e Coimbra, trazia uma nova população estudantil numa nova cidade, i.e., uma nova academia.

Em diferentes momentos até à I República estas novas academias foram adoptando diversas tradições associadas à Universidade de Coimbra, nomeadamente a Capa e Batina. Já se tentou explicar isto pelo seguinte facto: até 1880 o Liceu de Coimbra esteve dependente da Universidade e consequentemente os seus alunos eram obrigados a usar Capa e Batina. Assim, o Liceu de Coimbra teria influenciado os outros liceus no traje.

Mas esta teoria não explica o caso do Porto, em que parecem ter sido as escolas superiores a começar a usar a Capa e Batina. É mais verosímil que a influência tenha vindo directamente da Universidade de Coimbra, da imagem romântica e algo mítica do estudante de Coimbra, que os estudantes do resto do país admirariam e na qual quereriam participar. No caso do Porto (e no de Lisboa) existiria possivelmente mais uma motivação: as escolas superiores de Lisboa e do Porto eram, à partida, inferiores à Universidade, pelo simples facto de não serem universitárias (principalmente as do Porto, longe do Terreiro do Paço). E isto apesar de o seu ensino não ser de tipo essencialmente diferente do universitário. As Escolas Médico-Cirúrgicas eram, aliás, concorrentes directas da Faculdade de Medicina de Coimbra.

Neste contexto, em Novembro de 1858, os estudantes da Academia Politécnica pedem ao governo para usar Capa e Batina, tal como os seus colegas da Universidade de Coimbra. Será talvez pertinente notar que por essa altura a Academia Politécnica começava a sair dum período de intensos ataques por parte do poder central, em que se chegou a propôr a sua extinção, e ainda em 1863 se propunha uma reforma pela qual na prática se tornaria uma escola de Engenharia de Minas (e nada mais!).

Não consta, no entanto, que o Governo tenha aceite o pedido, ou que algum estudante da Politécnica tenha usado a Capa e Batina nesta altura.
A primazia caberia a um grupo de estudantes da Escola Médico-Cirúrgica, 30 anos mais tarde. Uma outra geração. Mas que geração? Sem dúvida uma geração bastante activa a nível académico e a nível político. A geração do Ultimatum.

Mas até que ponto se impôs a Capa e Batina no Porto, no período até aos primeiros anos da República? É difícil dizer. Não há grande informação escrita que caracterize o seu uso nesta altura. Há algumas indicações de uso:

- A capa da pauta do pasacalle “Amor da Pátria”, “Brinde aos Académicos do Porto” (referência ao movimento do Ultimatum), de Eduardo da Fonseca, apresenta um desenho com vários estudantes, de Capa e Batina.

- Em 1891 a quintanista de Medicina Maria Paes Moreira aparece numa fotografia de final de curso com um vestido (aparentemente negro) e uma capa de estudante traçada "à tricana".

- Em 1895 o Conselho Escolar da Academia Politécnica discute o pedido dos alunos das Escolas Superiores para ser decretado o uso obrigatório da capa e batina. O Conselho decide considerar o vestuário dos alunos indiferente.

- Há fotografias de turmas do Liceu em que todos os alunos aparecem de Capa e Batina.

- As fotografias da Tuna de 1897 e 1909 e um desenho de tunos (?) de 1902 mostram os tunos de Capa e Batina.

O que se pode concluir? Concerteza a adopção do simbolismo da Capa e Batina, com consequente uso por parte de organismos académicos como a Tuna; mas as fotografias dos finalistas da Médica parecem indicar pouco uso efectivo. De qualquer forma parece poder concluir-se sem grande perigo que a Capa e Batina era muito mais usada no Liceu do que na Médica. Quanto às outras escolas...?

Façamos aqui um parêntesis para notar que os estudantes que usavam nesta época a Capa e Batina no Porto acompanhavam as modificações que se faziam sentir em Coimbra . É notória a diferença entre o traje académico que se vê na pauta do pasa-calle Amor da Pátria (em 1890) e aquele que os orfeonistas adoptaram (em 1912). Quanto às imagens destes últimos, espelham bem a falta de "normalização" da Capa e Batina no início da República.

Voltanto à questão do maior ou menor uso da Capa e Batina, já vimos que no início da República se tinha atingido um ponto muito baixo. No entanto as condições iam-se modificando, de maneira a incentivar esse uso: em 1911 é fundada a Associação dos Estudantes do Porto, em 1912 o Orfeão Académico do Porto. De uma maneira geral, a vida académica ia-se enriquecendo. Em Março de 1916:

"Sem prévia consulta à Academia de Coimbra, os estudantes universitários do Porto resolveram, por maioria, usar capa e batina e uma fita na lapela, da cor da respectiva Faculdade."

Assim, o aumento do uso da Capa e Batina parece ter sido desencadeado por uma decisão da maioria dos estudantes da Universidade (em Assembleia Magna?), conjugada com a imposição aos caloiros do acatamento dessa decisão. Mas é claro que se não houvesse condições propícias esse aumento seria transitório e passado um ou dois anos (ou talvez um ou dois meses...) a Capa e Batina estaria outra vez esquecida.

A verdade é que essas condições propícias existiam, e nos anos 20 já não eram invocadas nem a decisão de 1916 nem a "legislação muito bem inspirada".

A geração dos anos 20 foi a vários títulos excepcional, e essa década pode ser considerada a Idade de Ouro da Academia do Porto. Os estudantes da altura tinham consciência de um crescendo de actividade da Academia:

"O uso da capa e batina que [...] tanto se tem vulgarizado entre nós é uma prova bem eloquente de que a nossa Academia procura ressurgir, elevar-se, e consegui-lo-á, disso estou plenamente convencido, exactamente porque para o conseguir emprega todo o entusiasmo, toda a vitalidade da sua alma moça. [Uma homenagem aos poveiros ...], a reorganização da Associação dos Estudantes [...], a criação deste jornal [Porto Académico...], a criação do Orfeon e Tuna [...], essa gloriosa jornada a Madrid [...], a realização do próximo festival e cortejo carnavalesco, a celeuma que produziu determinada ceia oferecida aos representantes das academias que ultimamente nos visitaram, o grande interesse e discussão que têm despertado as próximas eleições da Associação [são] tantas outras provas da vitalidade da nossa Mocidade académica [...]. A Academia do Porto ressurge hoje daquela apatia para a qual a lançou esse tremendo conflito europeu que não poupou classes nem ideais."

De qualquer forma, dois factos são certos:

1- fosse por iniciativa de uns poucos ou não, a Academia "mexia-se". Noutras épocas, ou esses poucos não existiram, ou a Academia não esteve disposta a segui-los.

2- a generalidade dos estudantes tinha a noção, certa ou errada, de viver um momento alto na Academia. Muitos textos posteriores desses estudantes, de recordações, nos dão conta desse facto. Claro que essas recordações costumam ser exageradas. Todos dizem "bons tempos, aqueles!". Mas as da década de 20 são em maior quantidade e mais entusiastas que as de qualquer outra época.

O uso intensivo da Capa e batina está intimamente associado a este apogeu da Academia do Porto. Assim, o dr. Amândio Marques podia dizer "todos nós usávamos capa e batina" ou (mais à frente no mesmo texto) "eu sempre de capa e batina - nunca conheci outro traje", e o jornal Porto Académico podia usar e abusar de expressões como "capas negras românticas", referindo-se tão somente aos estudantes do Porto.

Complementando agora (pois já é possível) com testemunhos orais de contemporâneos, podemos citar o Dr. Serafim Oliveira (estudante da Faculdade de Ciências entre 1927 e 1932, tio-avô do autor), segundo o qual no seu tempo não "íamos a nenhum acto da Faculdade sem ser de Capa e Batina"; ou Fernando Lencart (aluno do Liceu Alexandre Herculano por volta de 1930) que diz que nesse liceu "havia poucos estudantes à futrica"; ou a família do dr. António Correia de Melo (nascido em 1913, também tio-avô do autor) segundo a qual este começou a usar Capa e Batina aos 15 anos (no Liceu Alexandre Herculano), todos os dias, porque os pais não tinham grandes possibilidades financeiras e a Capa e Batina representava uma economia substancial, usando diariamente a mesma roupa sem fazer má figura.

Podemos imaginar o académico do Porto desta época usando por norma o Traje Académico. Ao simbolismo da Capa e Batina, que há muito se tinha importado de Coimbra, vem juntar-se um uso efectivo, quotidiano, o que torna a Capa e Batina identificativa também do estudante portuense.

Depois desses "gloriosos" anos 20, vieram uns anos 30 de nítido recuo na vivência académica portuense. Diversas razões contribuíram para isso: em 1928 a Faculdade de Letras (politicamente indesejável) é extinta pelo governo da Ditadura (continuaria a funcionar até 1932 só para permitir aos alunos inscritos que terminassem os seus cursos); o Orfeão e a Tuna desaparecem em 1930, no rescaldo de sérios confrontos entre estudantes e a polícia, de que resultou a morte de um académico; o Porto Académico deixa de se publicar também nesse ano de 1930; a Associação Académica é extinta por despacho ministerial de 24 de Novembro de 1932. Os organismos que tinham sido os grande bastiões da vida académica, e até uma das cinco faculdades da Universidade, desapareciam.


Fonte: Porto Académico

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